domingo, 27 de junho de 2010

Direitos esquecidos

Excluídas de benefícios trabalhistas, domésticas brasileiras ainda se consideram vítimas de herança da escravidão 


Todos os dias, Cícera da Silva, de 48 anos, acorda às 5 horas, toma café e vai para o trabalho em um trem que parte às 5h45. 

Ela mora na cidade de Itapevi, a 43 quilômetros da capital paulista e, para chegar nas casas em que trabalha, na zona oeste de São Paulo, utiliza dois ônibus e um trem que, quando atrasam, fazem com que ela leve até 2h50 para chegar ao serviço. 

“Ciça”, como é conhecida, trabalha como doméstica. Ela estudou até a segunda série do ensino fundamental e depois disso o pai achou que escola era “perda de tempo” e a levou para trabalhar na roça. Há 20 anos ela passa os dias com pilhas de louças e roupas para lavar. “Não pude ter uma profissão melhor. 

O trabalho é pesado e tenho muitas colegas que não são tratadas dignamente, que não podem comer a mesma comida da casa e sempre existem mais tarefas do que o combinado com o patrão. 

Eu não indico isso para ninguém. Minha filha não vai trabalhar em casa de família. Quero um futuro melhor para ela.” “Ciça” faz parte dos mais de 6 milhões de mulheres que exercem o trabalho doméstico no Brasil, 73% delas sem carteira de trabalho assinada, de acordo com o último estudo da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). “Ciça” optou por não ser registrada porque diz conseguir ganhar mais como diarista, em várias casas, a R$ 70 por dia. 

O salário mínimo da empregada doméstica no Brasil varia em cada Estado, mas começa em R$ 511,29, no Rio Grande do Sul (veja tabela na página ao lado). 

“O fato de não se registrar as domésticas é herança da cultura escravagista que há no Brasil. Até hoje nunca houve investimento do Governo para orientar e até incentivar esse registro”, conta Mario Avelino, presidente da organização não-governamental (ONG) Doméstica Legal. 

Na entidade ele luta pela aprovação de vários projetos de lei para incentivar as contratações com carteira no setor, entre eles o que reduziria os atuais 20% pagos ao INSS, quando se registra um trabalhador doméstico, para 12%, percentual dividido entre patrão e empregado.

Ele relembra ainda que, desde 2008, o Brasil faz parte de uma convenção da Organização Internacional do Trabalho (OIT) que proíbe atividades domésticas para menores de 18 anos. “Mas por aqui temos cerca de 410 mil trabalhadores menores. 

No interior do País há casos de pessoas que pegam crianças e adolescentes de pais pobres e dizem que vão levar para a cidade para estudar mas, na verdade, as crianças ou adolescentes passam a trabalhar como domésticos”, relata Avelino. 

Muitas nem recebem salário e trabalham por comida e moradia, como aconteceu com a hoje presidente da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad), Creuza Maria Oliveira, de 53 anos. 

Ela, que tem experiência de 40 anos limpando casas de famílias, conta que começou aos 10 anos, no interior da Bahia, depois da morte do pai, quando trabalhava só para poder comer. “Antigamente era muito pior porque não tinha lei que protegesse a criança e o adolescente. Trabalhei por restos de comidas, em troca de roupas usadas. 

É muito sofrimento. Via os filhos da minha patroa com a minha idade brincando e indo para a escola enquanto eu estava trabalhando. Isso tudo faz com que a pessoa se sinta inferior e incapaz. Depois para recuperar essa estima é dificílimo”, descreve. 

Hoje ela luta por direitos iguais aos dos outros trabalhadores para a categoria que, entre outras coisas, não tem direito a multa de 40% sobre o FGTS se dispensada sem justa causa. 

“Queremos que se mude a Constituição, que nos exclui de alguns benefícios trabalhistas. 

E a patroa que não puder pagar o que é certo, que não tenha doméstica e vá para a própria cozinha fazer o trabalho”, diz. (A.M)

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